Segunda-feira, 18 de Fevereiro de 2013
contos a duas mãos 5

A carta


   O velho rendeiro está desanimado. A terra está a produzir pouco, o adubo quimico queima o solo, estrume não há desde que os inspectores fecharam a vacaria. Voltou-se para as estufas mas comprar as sementes todos os anos á cooperativa sai muito caro.Sementes de hibridos e adubos estão a sair ao preço da produção. Não consegue escoar os produtos a preço razoável. Que fazer? Voltar-se para onde? Talvez o negócio do aviário não seja má ideia agora que o povo só compra barato. Carne de frango é boa para o pobre. As galinhas poedeiras podem dar um rendimento extra. Sente-se estrangulado mas pelo menos o senhoria mantem a renda baixa.
   Aproxima-se de casa, cabisbaixo e imerso nos seus pensamentos e a filha sai disparada pela porta.
   - Pai, chegou carta da senhoria.
   Segurou a carta que a filha lhe estendia.Não tinha coragem para a abrir e enfiou-a no bolso da camisa de escocês. Sentou-se nos degraus da escada, descalçou as botas enlameadas e bateu-as com força contra o chão de cimento para despregar os torrões de terra. Pegou por fim na carta e abriu-a. Era o que temia, a senhoria comunicava que teria que subir a renda, porque as despesas eram cada dia maiores, e não tinha outro meio de lhes fazer face. Abanou a cabeça, desanimado. Se não fosse pela filha, mais valia enfiar um cartucho de chumbo nos miolos e resolviam-se os problemas todos.
Entrou na casa de cabeça baixa, lavou as mãos e comeu o caldo olorífero que a filha pusera na mesa, acompanhado por um naco de pão e uma taça de vinho. A filha sentou-se ao seu lado, encostou a cabeça ao seu ombro, dando a entender que percebera tudo. Mas havia algo mais naquele silêncio e naquele gesto da filha. Afagou-lhe os cabelos com suavidade, incitando-a a falar.
   - Sabes, pai, o Marco, o meu namorado, quer falar contigo, e eu pedi-lhe para vir aqui ter. Deve estar a chegar. Durante a tarde, fiz uma tarte de maçã, e vou pôr agora uma cafeteira de água ao lume para fazer um café para todos.
   O velho assentiu com uma mansidão fatalista. O Marco era um jovem da terra, acabara o serviço militar e arrendara a antiga fazenda que era propriedade dos Castros, reconstruíra a casa e montara nos terrenos um aviário que parecia ir de vento em popa. Era natural que, agora que as coisas lhe pareciam estar a correr bem, desejasse criar raízes, casar-se com a sua filha, criar uma família...era a ordem natural das coisas.  Custava-lhe a ideia de ficar sozinho naquela casa, mas não lhe cabia opor-se a isso, seria de uma insensatez parva e sem futuro.
   Acabou de comer e foi sentar-se no cadeirão. Ligou o velho rádio. Estava quase na hora das notícias e preocupava-o o tempo que faria no dia seguinte. Mas baixou o volume do rádio quando ouviu um rumor de vozes na entrada, e acabou por o desligar quando o rapagão entrou na sala. A filha puxou uma das cadeiras da mesa para ao pé do pai, e Marco sentou-se nela depois de lhe apertar timidamente a mão. Instalou-se um incómodo silêncio entre os dois, com Marco a raspar com a unha no zip do impermeável e o velho diante de si com as mãos enclavinhadas nos braços do cadeirão como se estivesse sentado num avião prestes a levantar voo. A filha interveio, colocou um banco de madeira no meio dos dois, com um pano de cozinha por cima, onde conseguiu acondicionar as duas chávenas de café quente e um prato de louça com algumas fatias da tarte de maçã; e enquanto o fazia ia chilreando para manter afastado o silêncio - que o café estava forte como ambos gostavam, que fizera a tarte com maçãs do pequeno pomar ao lado da estufa, e que parecia estar boa porque provara uma talisca dela, mas eles lá o diriam. Marco pôs-se muito direito na cadeira e aproveitando a ondulação das palavras da namorada, começou também a falar.
   - O senhor Sezinando sabe que eu namoro com a sua filha há quase três anos, e que sempre pensamos em fazer vida juntos. Chegamos a pensar em datas, mas agora todos os nossos planos deram em nada...
   - Então porquê?
   - Ardeu a casa onde eu morava. Foi há três noites, uma fuga de gás. Ainda era daquelas instalações com mangueira flexível de gás e abraçadeiras, e eu já pensara comigo que aquilo era um perigo e que devia chamar um técnico para fazer tudo de novo mas, infelizmente, deixei as coisas andar e foi a minha desgraça. Eu estava a trabalhar no aviário e, quando dei por ela, não pude fazer nada, parecia uma tocha a arder...
   - Não soube de nada, lamento.
   O jovem agradeceu, baixando os olhos para não se perceber a sua comoção.
   - Falei com os senhorios, e eles não me consideram responsável porque compreendem que foi uma tragédia que podia acontecer com a casa desabitada, e eles sabem bem o que eu trabalhei naquela casa para a por como deve ser. Mas por outro lado, é impensável eu reconstruí-la a partir dos escombros, e o senhor Castro também é da mesma opinião e diz que seria melhor pensado ele vender o terreno tal como está, porque a casa que lá estava também já estava a caminhar para ruína. Vistas as coisas, tinha algo para lhe propor, senhor Sezinando!
   - Diz, meu rapaz!
   Marco engoliu um bocado grande de bolo que quase lhe obstruía a curva da garganta, encheu o peito de ar e continuou.
   - O aviário que eu montei continua intato, e eu só não tenho é casa. Estou a dormir numa pensão na vila. A sua filha disse-me que vocês têm um quarto vago, que pertencia ao seu filho mais velho, o que se mudou para Coimbra. Se o senhor achasse bem, eu mudava-me para esse quarto. Instalava cá o aviário, e pelos dois fazíamos o trabalho, pagávamos a renda e suportávamos os outros custos da exploração, como uma família. Com dois pares de braços, seria tudo muito mais fácil e, depois, se tudo corresse bem, eu e a sua filha podíamos voltar a pensar em dar o nó. Se o senhor achar bem, uma coisa e outra...
   Desta vez foi a vez do velho se comover. Como era homem de poucas palavras, levantou-se, abraça com força o namorado da filha e diz-lhe:
  - Se queres mudar-te para cá, de que é que estás à espera?

 

Maria e José

publicado por maria anjos castanheira calado às 20:32
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