Noite escura e cerrada de nevoeiro. Na floresta os pingos de chuva chicoteiam o chão molhado numa imensidão negra. Por detrás da vidraça luminosa, aconchegada, uma criança olha a escuridão. Olhos límpidos, cristalinos, cintilantes; que perscrutam o nevoeiro e as trevas. Com as pontas dos dedos, com a palma da mão, garatuja e limpa o vidro embaciado como se a noite pudesse ser desvelada por esses gestos mágicos. Ainda assim, as suas pupilas não vêem mais do que o semblante fechado da noite. Mas a criança sente mais do que aquilo que vê com os olhos, divisa formas e seres cujo brilho transluz do outro lado do vidro. Apercebe-se da coruja na cornija do barracão que está muito quieta e de olhos na casa, como uma sentinela petrificada, de coelhos a espreitar das locas enlameadas e, ainda mais longe, no carreiro na margem da vala eriçada de caniços, a figura encurvada do seu pai a caminhar em esforço com lama até aos joelhos, regressa a casa, move as pernas com uma força quase hidráulica, mecanismo experiente talhado para vencer a intempérie e domar a terra bravia. Esgrime um varapau, crava-o no chão para auxiliar a marcha, pragueja e amaldiçoa o tempo e a sua pouca sorte, como faz sempre, e a criança consegue sentir, admirar, os ângulos crispados das suas rugas por entre os fios de água que escorrem da aba larga e encurvada do chapéu, a boca sem dentes aberta, a arfar com o esforço. A criança perscruta com mais atenção, espera, deseja, que venha mais alguém com ele, segura, guiada pela mão. Mas depressa se desilude, perde o ânimo. O pai regressa sozinho.
Ela abandona o seu lugar junto à janela e vai sentar-se no chão, próximo ao braseiro, com as pernas flectidas e as mãos unidas numa prece involuntária. Talvez estivesse enganada, e a mãe entrasse também com ele, voltasse para eles. A mãe partira para longe, explicara-lhe um dia o pai com uma expressão carregada como ele nunca lhe vira. E agora lá voltava ele, de novo só, entrando na casa empurrado por um aluvião de vento, frio e chuva. Tira o chapéu e o impermeável e abana negativamente a cabeça, enquanto a água escorre dele para o chão, aureolando-lhe de água as botas pardas da lama. A criança segue-lhe os gestos, ainda incrédula, esperançada, e novamente se refugia junto à janela. Limpa os vidros embaciados e fixa a noite. Não era mau de todo que a mãe não tivesse escolhido aquele dia para regressar, o rio estava cheio com a água da chuva, e ela era tanta que podia ter arrastado na correnteza o frágil cais de madeira. Mas o pai não vira nada, seguira as suas súplicas e fora até ao cais para ver se algum barco ali chegara ou, o que era uma ideia ainda mais terrível, se avistava nas águas negras do rio algum sinal de naufrágio, de destroços de barcos. Não vira nada, e tudo iria ficar bem, a tempestade iria passar, e o caudal furioso do rio amainaria como uma serpente fatigada. A chuva já caía com menos intensidade, e conseguia aperceber-se dos coelhos que saltitavam entre as ervas, saídas das tocas inundadas de água, audazes por terem perdido o medo da coruja na cornija do barracão, que não lhes presta atenção e que continua com os olhos fixos na casa, e na criança por detrás do vidro, como se velasse por ela.
...com a minha colaboração.
O velho Merlin esconde a familia real nas brumas perdidas.
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A espuma dos tempos lavará a memória.