A Menina Gotinha de Água é uma história antiga que povoa a minha imaginação desde a meninice. Flui continuamente de reserva em reserva, uma vezes fica aprisionada por longos períodos mas logo se evapora e se faz chuva ou neve.
Também nós precisamos fluir por vezes, observar os pingos de água fluir, alcançar os céus ou descer à toalhas freática. A menina nunca tem fim, em ciclo, continua eternamente a sorrir. Só muda de reservatório. A vida é bela quando o sol incide a menina e a faz subir até ás nuvens. Mas depois alimenta as raízes e é bela também. O ciclo é que nos salva.
Tinha poucos anos, talvez sete, quando ocorreu o 25 de Abril de 74. Desses tempos guardo a lembrança do medo do Regedor e das reguadas da professora na escola. Autoridade, medo. Autoridade, medo.
Vivia-se miseravelmente, em casebres sem condições, nasci numa casa de xisto sem água ou luz, o meu pai tinha emigrado. Solidão, miséria, medo, autoridade.
Depois tive direito a escola, pude estudar, o dinheiro do emigrante, esse desconhecido, ia dando para pagar os livros. O que é um pai? O nome na folha, os presentes na Natal, a ausência de colo. Autoridade, medo, solidão,… o que é o tempo, holiwood, como se soletra France? perguntava enquanto assistia às aulas pela televisão. A matemática na aula de música, o frio, o aquecimento que não havia. A autoridade desapareceu, mas ficou o medo e o reflexo condicionado pela autoridade que intimida, ficou o frio, a televisão. Bonjour, les enfant! Qu’ést que tu ferais si tu gagnais le euromilion? Não sei senhor inspector…
parte 1
parte2
parte3
Lembram-se desta dupla? Anos oitenta, concerto, Barcelona, duas vozes fabulosas.
Sempre pensei que Mercury tinha uma voz potente mas quando ouço Caballé percebo o que é uma voz potente educada.O folêgo. Assim como um caudal que se verga à vontade humana...
Saio cedo pela manhã, sol uns dias, chuva noutros. Embarco sonolenta no comboio da minha rotina e obrigo-me a acordar para uma realidade fria, cinzenta, tensa, extenuante.
Nos dias de semana o corpo vai-se retesando ao longo do dia acumulando o cansaço. Progressivamente os tendões endurecem, a linha do rosto fecha-se, os sorrisos são raros. Os cigarros sucedem-se num progressivo anestesiamento preparando-me mentalmente para o embate. Depois a anestesia faz efeito, deixo de sentir, o meu corpo a moldar-se à rotina. Actuo por instinto, a faculdade da razão em piloto automático, corrijo, adapto, repreendo, discurso, converso. Sucessivamente de forma ritmada o meu corpo progride ao longo do dia, a resistência deu lugar à resiliência e só um cansaço profundo como um pesadelo de que não se acorda me liga ao mundo da seiva. O dia termina e a rotina muda. Procuro notícias, inteiro-me do andamento dos meus, olho para dentro em busca de consolo.Todos os dias de semana.
Às vezes o sol.