Hoje a minorca pede-me que fale sobre a descoberta do fogo. Seria um relâmpago ou um acaso numa zona de seixos que faiscaram? Não se sabe, há coisas que só podemos imaginar e nunca certificar. Mas de facto, um dia o homem pode dominar o fogo. Do medo imenso do fogo descontrolado nunca ninguém nos curou mas o todo divide-se em partes e as partes dominam-se. È também assim com o positivismo, não é?
Um pau contra madeira seca, um seixo contra outro, um fósforo, um isqueiro. Voilá. A parte dominada. Acender a fogueira é mais complicado, é precisa técnica para dispor a lenha a jeito, uma pinha, um pouco de palha seca, uma acendalha. Com paciência o fio de lume incendeia, dá calor, dá luz. Cozinhar alimentos tornou-se rotina e a rotina amenizou o sistema digestivo que passou a digerir com mais facilidade novos alimentos. Os animais foram enxotados para longe e o homem sonhou. Sim, dizem que foi o fogo que permitiu o sonho.
Os dias passam-se lentamente e lentamente se escoam quando os horários não nos espartilham. Olhamos as paredes, o tecto, o sol, a floresta e tudo nos parece quedo e sossegado. Alheios ao tumulto lá fora, os segundos escoam-se, e quando reparamos mais um dia findou, mais um dia tomba sob a noite. O frio insinua-se junto do corpo e por isso procuramos o aconchego da lareira, o fumo a sair pela chaminé, a luz a bailar diante dos nossos olhos. O borralho forma figuras indizíveis nos tocos que desaparecem pelas labaredas. Mais logo, procura-se a luz eléctrica para incendiar os nossos olhos e as figuras negras das letras formam cenários fantásticos de locais que nunca vemos fisicamente mas conhecemos na intimidade virtual. Voamos por mundos fantásticos e sonhamos mais um pouco antecipando um sono sossegado povoado de dias claros que não há. Talvez nos quedemos a conversar um pouco e esse pouco seja suficiente para respirar a atmosfera carregada do exterior. Mas mesmo assim, o filtro tudo relativiza e, acabamos por estranhar a guerra que já vem chegando. Depois será tempo de mergulhar no mundo e de dolorosamente lutar por cada pedaço de liberdade.
A última ceia é simbólica. Mas simbólica de quê? Cristo, filho de Deus, encarnou e fez-se homem. Como homem cresceu, aprendeu, lutou e morreu. Mas eu, também luto, também eu nasci, cresci, também eu luto. Mas a minha genealogia não é a de David.A minha genealogia perde-se na bruma do anonimato, do povo, do escravo plebeu. Eu não sou irmão de Jesus. Deus não é meu pai.
Cristo lutou pela sua causa, podia fazer milagres, converteu milhões. Eu não faço milagres, eu não converto ninguém. Depois, reuniu-os numa última ceia simbólica, anunciou-lhes o milagre da transubstanciação. Este é o meu corpo. Este é o meu sangue. E eles celebraram a humanidade que se transforma
Do meu corpo e do meu sangue restarão cinzas, moléculas ao vento, errando pela paisagem. E a Terra conterá o meu sangue e o meu corpo e cada amanhecer esquecerá o meu nome. A minha genealogia contém o infinito no zero.
A paz sem vencedor e sem vencidos |
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Que o tempo que nos deste seja um novo Recomeço de esperança e de justiça. Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Erguei o nosso ser à transparência Para podermos ler melhor a vida Para entendermos vosso mandamento Para que venha a nós o vosso reino Dai-nos A paz sem vencedor e sem vencidos Fazei Senhor que a paz seja de todos Dai-nos a paz que nasce da verdade Dai-nos a paz que nasce da justiça Dai-nos a paz chamada liberdade Dai-nos Senhor paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos Sophia de Mello Breyner Andresen Dual (1972) |
The Gates of Istanbul - Loreena McKennitt
Tal como na velha história das mil e uma noites, as princesas têm de continuar a contar a história no dia seguinte para que o Sultão não lhes corte a cabeça.
Era uma vez, ...uma e mil vezes!