Quarta-feira, 30 de Novembro de 2005
De um livro...
Conto a Christine
Como se cruza a trama de descobrimento da vida natal (aquela que ensina a achar o resultado verdadeiro): uma chave que um raio de sol ilumina, ficou à beira da mesa;
pego na chave e vejo, noutro móvel, um cofre; desce sobre mim a ideia de que a chave que retenho na mão abre esse cofre; corro a lingueta da sua fechadura; dentro, há chaves maiores com que me volto para uma porta, e aproximo-me de uma janela que dá entrada num espaço- solo neutro onde está sobre um tapete uma moeda de cobre; pego na moeda, e meto-a na fenda da próxima porta; movo-me com segurança por entre pensamentos alternativos, com a certeza de que a ideia seguinte penetrará ainda no íntimo, e é o resultado de eu ter seguido o raio de sol no inicio.
Llansol, idem
Que conceito é este de vida natal? A vida que realmente temos? A que imaginamos? Uma mistura de ambas?
Depois, este conceito expande-se, descobrindo-se que tudo se arranja como se capas se sobrepusessem a capas. Descascamo-nos como cebolas até não restar nada mais.
Não seremos mais que meras aparências que sucessivamente vamos construindo acabando por atingir o nada.
Ou existirá, dentro de nós, um núcleo primevo que nos religue ao mundo?
Terça-feira, 29 de Novembro de 2005
De um livro...
___ e volto à penumbra, para lá do bem e do mal:
"e tu como vais, Christine?"
"torno-me lentamente «une vielle femme», e fora eu, sempre possuida pelo mesmo eco que amplifica, que vira imediatamente em imagem «torno-me lentamente une vielle femme, uma mulher que envelhece, uma velhinha.»
Disse-lhe a pouco e pouco, deslizando entre a minha língua e a dela:Christine, estou sempre sobre a ruina de escrever» e ela compreendeu que eu devia estar a vê-la, pálida no tecido quase sem cor, ou sendo a sua pele, de cor perdida, o contorno da saia e da blusa;
Maria Gabriela Llansol, O raio sobre o Lápis, ed. Assírio & Alvim
Llansol faz-nos entrar num mundo de sugestão, num mundo de ideia indifinidas, num mundo de impressões.
Não interessa compreender a narrativa, interessa pensar, sentir cada impressão e dar-lhe sentido. Um sentido.
Vou dedicar-me a descobrir este livro que já foi lido, relido, trelido. E é sempre novo.
Domingo, 27 de Novembro de 2005
...
Sábado, 26 de Novembro de 2005
Tactear 17
Caiu neve na serra e o manto branco estende-se a perder de vista.
Não sei quantas vezes escrevi já sobre a neve na serra, o manto branco, o frio seco, a morte asséptica e branca. Há alturas em que tudo o que resta é já uma imensa repetição de gestos mecânicos. De dizeres mecânicos.
Caiu neve. Que se lixe a neve.
Quinta-feira, 24 de Novembro de 2005
Tactear 16
Amador sem coisa amada
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.
António Gedeão