Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2004
Um conto de Natal

Durante nove meses perseguiram uma estrela, misteriosa e bela por sobre o grande reino da Pérsia. Nove meses, dizem os antigos testamentos, que é o tempo humano da gestação e tudo isto não podia ser mais humano ou menos divino.


Os Reis Magos perseguiram aquela estrela vencendo o calor dos desertos e iludindo os salteadores por entre as dunas e as sombras da noite. Melquior, o mais velho, austero nas suas longas barbas brancas, seguia segurando com a tenacidade do medo um pequeno pote de oiro.


A seu lado, Baltazar sobressaia com o rigor do negro na pele e nas cerradas barbas, seguia altivo contra os horizontes de areia. Sem nunca esgotar a voz, Baltazar contava histórias da Índia tão longe como adorada. Levava consigo mirra e uma enorme curiosidade.


À frente, marcando o destino e decifrando os sinais dos tempos e de todos os perigos, Gaspar era o mais jovem dos três Reis Magos. Levava incenso e aromas perfumados para o menino Jesus.


Mas nem o Evangelho Siro-Árabe da Infância refere uma quarta personagem. Atrás dos Reis Magos uma outra figura assomava e seguia amargurada por entre os rastos e a poeira do deserto.


Pode deslumbrar-se sob o linho uma figura feminina.


Seguia silenciosa atrás dos Reis Magos. Não levava oiro, nem incenso nem mirra. Não levava nada.


No final da jornada, o menino Jesus era nascido e os Reis Magos depositaram com cerimónia as suas oferendas.


Jesus chorava, mas sua mãe virgem agradeceu enternecida com uma vénia, enquanto José recolhia os presentes. Oiro, incenso e mirra.


Até que por de trás da manjedoura se levantou uma mulher de olhos tristes.


Não precisou falar. O olhar confessou e o sangue que havia no linho. Aquela mulher tinha recentemente perdido um filho. Suas mãos vazias também testemunhavam, mas agora estava feliz por poder ser útil.


Não trazia oiro, nem incenso nem mirra.


Sem oposição, agarrou no menino Jesus e começou a amamentá-lo do seu peito.




 


A.r.


29 de Dezembro de 2004


(conto inédito do meu heterónimo)




(Quadro da pintora Andreé PAGÉS-SCHREYER, dat. de 1996)


publicado por maria anjos castanheira calado às 05:36
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Terça-feira, 28 de Dezembro de 2004
Prendas

prenda de Natal para a Maria*

resistência

Não apenas a música
mas o som
o ruído que envolve
o oculto grito

Não o nome somente
mas vestígio
o timbre recordado de seu
espaço

Não apenas figura
mas silêncio
silhueta ou contorno
na memória

Não o medo ou o azougue
sobre esta carne morta

Mas um vívido traço
ainda que incompleto

Mas singeleza como
um corpo inconformado.


Nicolau Saião


O meu mais singelo sorriso para o Tempo Dual.

publicado por maria anjos castanheira calado às 08:07
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Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2004
Noite Feliz
Era uma vez uma árvore e um pássaro de fogo que viviam num deserto.
Um dia soprou um vento forte e o pássaro perdeu a distinção do fogo, tudo o que o tornava único no mundo parecia irremediavelmente corrompido por esse vento forte.
A árvore solitária, uma simples árvore comum cujo único mistério era existir por entre dunas e paisagens áridas de areia, pensou que ela e o pássaro - que tinha perdido o fogo - podiam ser, finalmente, amigos. É que, para uma árvore tão agreste e solitária, não dava muito jeito ter um amigo que fosse um pássaro flamejante de fogo. A árvore seria incendiada se o pássaro pousasse nos seus ramos ressequidos.
Além disso, um pássaro que tinha perdido a sua magnificência estava mais perto da sua tristeza de árvore solitária do deserto. É que, pensava a árvore com os seus ramos secos, é preciso uma boa dose de tristeza para a amizade ser autêntica, pois se todos os seres vivessem felizes e absolutamente satisfeitos consigo próprios não teriam disponibilidade para olhar além do seu reflexo doirado.
O pássaro que tinha perdido o fogo aproximou-se a árvore e pousou-lhe suavemente nos ramos. Tão triste se encontrava que se aconchegou junto do tronco e abraçando a árvore adormeceu. E sonhou. Sonhou com uma árvore frondosa, cheia de verde vida, cheia de esperança, tão forte que o seu fogo não podia chamuscá-la. Embalado pela leve brisa que soprava agora, o pássaro sonhou.
publicado por maria anjos castanheira calado às 10:03
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Quarta-feira, 22 de Dezembro de 2004
Olhares 16

Floresta desperta, em meio de Invernos doridos
Ousaste pressentir a primavera,
E deixaste coar de leve a tua prata
Para eu ver como a tua saudade reverdece.


E ao sabor dos caminhos que através de ti me levam
Não reconheço nem donde nem para onde,
E apenas sei: havia portas ante os teus mistérios fundos-
E já não as há.


Rilke

publicado por maria anjos castanheira calado às 11:36
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Terça-feira, 21 de Dezembro de 2004
Olhares 15

Tenho tentado pensar sobre o impacto que as velhas práticas ancestrais têm nos dias de hoje. Falo de práticas que remontam a práticas religiosas anteriores ao cristianismo, tradições que se misturaram com as celebrações cristãs. Uma dessas tradições tem a ver precisamente com a celebração dos Solestícios e dos equinócios. Eventualmente ligadas a tradições de origem primeva, de forma inequívoca ligadas aos ritmos das sementeiras, aos ciclos vegetativos das plantas e portanto às práticas agrícolas.
Uma das celebrações mais antigas tem a ver com o Solestício de Inverno. No dia mais pequeno do ano e, portanto, na noite mais comprida, acendiam-se fogueiras de que a fogueira de Natal poderá ser uma reminiscência. Mas mais curioso é perceber que essa celebração estava associada a ritos de passagem: o velho(a) que morre para dar lugar ao novo, o culminar da degenerescência, do caos, do velho. De facto segundo Aurélio Lopes (2000) os tempos de Solestício correspondem a um contexto tradicional de caos, desordem, transgressão e subversão de valores que se expressam por ritos mais ou menos estereotipados. Se o Solestício de Verão está associado à vitalidade, o Solestício de Inverno está associado à degeneração. Observa-se o declínio dos sol, o predomínio das trevas, período não fértil , decadência. A estas características são associados ritos de exorcismo de males e medos, frios e trevas, mortes e pecados, valores associados à decadência e à morte: assim aparecem personagens como velhos e velhas que são expulsos, enterrados, após terem dominado algum tempo. Repare-se na dualidade expressa por estes ritos: se por um lado impera a desordem, por outro existe um exorcismo do mal. Existe pois um tempo de esperança, um novo principio após um fim. Existe um inversão: o velho dá lugar ao novo...
Hoje em dia temos o Natal e o inicio do Novo Ano associados à celebração dos Solestício de Inverno...


 

publicado por maria anjos castanheira calado às 07:44
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